sexta-feira, 15 de maio de 2009

Os dois tipos de música*
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por Braúlio Tavares
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Muitas discussões sobre música popular e música erudita se encerram assim: “Essa divisão não faz sentido. O que existe mesmo é música boa e música ruim”. Tudo bem; mas falando em bom e ruim entramos num nevoeiro cerrado que faz empacar qualquer discussão mais séria. Quando tudo se resume a gostar ou não, ficamos desprovidos de um crivo externo de comparação. Precisamos de uma distinção que possa ser estabelecida “de fora”. Por isso sugiro uma: “Existem dois tipos de música: música para ouvir, e música para dançar”. Ou seja – podemos dizer que existe música para a mente, e música para o corpo. Existe música feita para ouvir e música feita para dançar, embora algumas músicas sirvam para as duas coisas, e muitas não sirvam para nenhuma. À primeira vista é um Muro de Berlim nítido e intransponível. Música para ouvir, por exemplo, é João Gilberto; música para dançar é Zé Calixto e seus 8 Baixos.
Numa temos o recolhimento intimista de quem, a sós, à meia-noite e à meia-luz, tilinta um uísque no copo quadrado, semicerra os olhos e se entrega aos desfrutes do tom, do som, do timbre, da textura, do entrecruzar das harmonias, do modo como voz, violão, melodia e letra se entretecem entre si. Na outra temos o resfolego frenético do instrumento, e as percussões sacudidas, segurando o ritmo implacável, daquele tipo que basta a gente ouvir para começar a balançar alguma coisa, seja lá o que for. Isto não impede, contudo, que a gente escute Zé Calixto (ou qualquer música-para-dançar, do rock ao reggae) para curtir a beleza musical do que está sendo feito. Nada impede que ao som de uma bossa-nova sofisticada o sujeito conduza a “cavaleira” ao salão e ali se entregue à nobre versão vertical da mais antiga das artes.
Alguém dirá: “Oi, e música clássica? Já se viu alguém dançar música clássica?” Bom, talvez ninguém dance John Cage ou o “Cravo Bem Temperado” de Bach; mas não esqueçamos as valsas de Strauss & Cia., que eram o filé da música dançante do seu tempo, assim como as músicas para balé clássico, que são compostas, sim, pensando em coreografia, pensando em passos a serem executados por corpos humanos. Será que os grandes balés de Tchaikovsky seriam ou não dançantes numa “balada” de hoje? Este é um detalhe circunstancial que não cancela o fato mais amplo de que aquela música foi feita para um tipo de dança, tão legítimo quanto qualquer outro. O jazz era freneticamente dançado nos anos 1920, 30, 40. Vemos nos documentários antigos uma orquestra tocando no palco e centenas de negros mandando ver no salão. Sofisticou-se, intelectualizou-se, mas a pulsação dançante ainda estala o dedo ao longo das semifusas. Algo parecido se defende hoje para o frevo. Muitos compositores e instrumentistas querem que o frevo não seja apenas um pretexto para “fazer o passo” no Carnaval, mas uma música que cresça em si própria e possa ser ouvida pela beleza de música que contém.
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Leonard Cohen**
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Num show recente em Londres, o poeta-compositor Leonard Cohen disse ao público: “Cantei aqui pela última vez há quinze anos. Naquele tempo eu era apenas um jovem, cheio de entusiasmo e ilusões”. A graça está no fato de que o último show de Cohen na Inglaterra foi feito quando ele tinha 60 anos, e hoje ele volta aos palcos com 75. Nada mau para quem já foi chamado “o poeta mais sisudo do rock”.
Durante os anos 1970, aquela década cheia de glamour e purpurinas e roupas psicodélicas e androginia e guitarras estridentes, as canções introspectivas e monótonas de Cohen eram absorvidas por uma minoria de gurmês para quem substância e sabor valiam mais do que pose e aparência.
Cohen é comparado a Bob Dylan, pela qualidade de suas letras, mas a atitude dos dois para com a música não poderia ser mais diferente. Dylan sempre foi um camaleão musical; experimentou todos os estilos, do country ao rock, do gospel ao blues, da valsa à balada. Há quem não o considere bom cantor (eu acho que foi um ótimo cantor em diferentes fases de sua carreira, e não o é mais), mas ele sempre teve uma abordagem de cantor ao interpretar as próprias músicas. Bem ou mal, o ato de cantar parecia mais importante para ele do que o ato de compor. Um dos melhores analistas de sua obra, Paul Williams, desenvolveu ao longo da série de livros “Bob Dylan, performing artist” a tese de que para Dylan a canção gravada em estúdio era apenas uma versão provisória para algo que só iria acontecer de verdade, e imprevisivelmente, quando ele subisse ao palco.
Cohen, que nunca foi um cantor com a mesma vitalidade e versatilidade de Dylan, é hoje aos 75 anos o mesmo cantor contido, meticuloso e incisivo que era há meio século. Seus discos saíram de forma irregular no Brasil, mas é possível ver no YouTube performances suas com trinta ou quarenta anos de intervalo, cantando a mesma canção, com a mesma articulação cuidadosa dos versos, reforçando pequenas sutilezas ou duplos sentidos ou ironias poéticas, das quais ele é um mestre completo. A voz está rouca, é claro, o rosto parece um pergaminho zen-budista, mas a suavidade no canto é a mesma. Ao contrário de Dylan, que parece recusar-se a repetir a mesma melodia em duas execuções da mesma canção, Cohen parece ter dedicado toda a vida a lapidar as mesmas notas, como João Gilberto.
Dylan é mais compositor, porque mais musical, mais flexível e mais eclético. As canções de Cohen são mais “quadradas” e “caretas”, para usar termos da época em que ele surgiu. Seguem o esquema de estrofes sucessivas com a mesma melodia e letra diferente, intercaladas às vezes por um refrão. Um esquema que Dylan usou mas que também explodiu em variantes incontáveis. Cohen é mais conservador nesse aspecto estrutural. Se ele tem uma canção de sete minutos, com um minuto e meio o ouvinte já sabe que vai ser aquilo até o fim, só que com versos diferentes. Quê que tem? Os versos dele estão entre os melhores do seu idioma no século 20.
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*Jornal da Paraiba, 12 de abril de 2009
** Jornal da Paraiba, 20 de maio de 2009

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