terça-feira, 31 de agosto de 2010

Angeli, uma entrevista

By Adelvan Kenobi

Nem todos os meus heróis morreram de overdose, felizmente. Tá aí o Angeli, um dos caras que mudaram a minha vida, vivo e ativo, “alive and kicking”, na capa de uma das melhores revistas a freqüentar as bancas desse imenso Brasil varonil, a TRIP. Sou fã do Angeli desde os tempos em que folheava a sua revista, Chiclete com Banana, na Livraria Cunha, lá em Itabaiana, porque era um moleque preguiçoso adolescente sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes e vivendo no interior. Através desta antológica publicação tive meus horizontes mentais ampliados e conheci, além dele, outros grandes heróis do cartum nacional que admiro e acompanho, na medida do possível, até hoje, como Laerte. Abaixo, a entrevista que serviu de mote para a capa da Trip, na íntegra (ou pelo menos como está publicada no site):




Angeli não é de oposição nem de situação. É do contra. Desenha há 37 anos contra a politicagem, contra o politicamente correto – e a favor do grande orgasmo universal

Talvez você não saiba. Pode ter se distraído e nem percebeu ou, sei lá, estava mais preocupado com qualquer outra coisa. Mas é certo: você foi zoado pelo Angeli. Todo mundo foi. Empresário? Confere. Motorista de táxi? Confere. Webmaster? Confere. Estilista, designer, publicitário? Confere. Motoboy? Também. Político? Ô.


Arnaldo Angeli Filho, 53 anos, coloca sua prancheta diariamente a serviço da avacalhação ampla, geral e irrestrita. Homem ou mulher, liberal ou conservador, descolado ou careta, não passa nada. Todos ridículos cidadãos da República dos Bananas, um país imaginário, incrivelmente semelhante a uma certa República Federativa do Brasil, formado por incríveis 28 mil charges políticas e tirinhas de comportamento – boa parte reproduzida na Folha de S. Paulo, onde Angeli publica há 37 anos.

No jornal, é o único nome que frequenta regularmente tanto o caderno de política quanto o de cultura. Suas charges, que lhe valeram a reputação de mais contundente chargista político do país, saem quatro vezes por semana no espaço nobre da página 2. Suas tiras, crônicas ilustradas de costumes e maus costumes, ocupam diariamente o topo da seção de quadrinhos. Para Angeli, não tem diferença: “Olho da mesma forma para o comportamento e para a política. Nas charges, penso como crítico de comportamento”. Há tempos é assim.

Ele começou cedo. Emplacou seu primeiro desenho aos 14, na extinta revista Senhor. É autodidata. Cresceu no bairro da Casa Verde, na modesta zona norte de São Paulo. Pai funileiro, mãe costureira, os dois filhos de imigrantes italianos. Anarquistas, graças a Deus? Ao contrário, uma família conservadora, “daquelas que só pensam em cuidar dos filhos e em trabalho, trabalho, trabalho”.

Ele aprendeu a lição (pelo menos essa, já que foi expulso da escola na quinta série, depois de repetir três vezes, e não voltou mais): “Me sinto um funileiro na hora de desenhar, sou um proletário”. Um proletário, diga-se, anterior às conquistas trabalhistas, como a jornada de oito horas. Com a insônia que o acompanha desde a adolescência, dorme apenas quatro horas por dia, e passa praticamente as outras 20 entre pincéis, nanquim e, no momento de colorir, computador.


“Todo mundo na família do meu pai tem mão pra desenho”, conta. “Mas só quem se profissionalizou fomos eu e um primo, que faz painéis pro McDonald’s. Como nossa assinatura é igual, a turma fala ‘Angeli se vendeu!’.” A acusação é recorrente, só o que muda é o comprador. Ora Angeli se vende para a direita, ora para a esquerda: depende de quem está apontando o dedo, de quem está no poder. “Nunca quis servir ninguém”, devolve. “É possível você ter um lado e ser crítico com esse lado também.”

Quando a ditadura acabou e Angeli já não via tanta graça em debochar da política, desviou seu foco do Planalto Central para as ruas de São Paulo. Criou com o amigo de infância Toninho Mendes a revista bimestral Chiclete com banana – na época, apenas uma canção do repertório de Jackson do Pandeiro, que tropicalistas transformaram em símbolo de miscigenação de ideias, nada a ver com grupo baiano de axé. Em páginas de papel tosco, personagens como Rê Bordosa, Bob Cuspe, Wood & Stock, Walter Ego e Os Skrotinhos protagonizaram, entre 1985 e 1990, a insana história da vida privada brasileira.

Angeli seguia um roteiro parecido. Mesmo em meio à loucurinha de sexo, drogas e rock’n’roll, deu um jeito de se casar três vezes. A primeira vez, com uma ex-colega de escola, durou quatro anos. A segunda rendeu 18 anos de união e dois filhos – Pedro, 29, faz parte do coletivo audiovisual Embolex, e Sofia, 25, dá aulas de educação física para crianças. O terceiro, com Carol, está completando 13 anos. Carolina de Carvalho, 33, é formada em arquitetura, trabalha com design gráfico e, como ela mesma diz, “cuida do rapaz”.


No apartamento de dois quartos onde mora e trabalha, no bairro paulistano de Higienópolis, Angeli conversou com a Trip entre cafés, cigarros e, como ninguém tem mais 20 anos, pães de queijo. Pendurado na sala, um pôster reproduz uma tira da série “Angeli em crise”. Lá está o avatar do cartunista, olhando a cidade pela janela. No primeiro quadrinho, ele se gaba: “Carros, edifícios, fumaça... Esta cidade eu conheço muito bem”. No seguinte, a cidade retruca: “Babacão, canalha, bicha, mau-caráter, panaca, tarado!”. E o terceiro conclui: “... e ela a mim, é claro”. Angeli zoa até Angeli.

Seu trabalho mudou a política de alguma maneira?
A política é um pouco mais poderosa, cara. É difícil a visão de um artista, de um crítico ou de um sociólogo mudar isso aí.

E o humor, em geral, muda a política?
O humor muda as pessoas. A política, tenho dúvidas.

Política não é feita por pessoas?
Você chama aquilo de pessoas?!

Você anula o voto?
Já anulei, mas não é uma regra.

Como vai ser nesta eleição?
A seleção?!

A eleição.
[Ri] Realmente não entendo nada de futebol... Mas você perguntou o quê?


Em quem você vai votar na próxima eleição.
Ah, deixa só dizer uma coisa: sou lesado. Minha memória recente não existe. Tem horas em que fico pensando “do que estava falando?!”. Mas você perguntou da eleição...

Em quem vai votar para presidente?
Não sei ainda... O cenário é bom, não tem Maluf no meio, nenhum Sarney. Se bem que o Sarney sempre está em algum lugar...

O que Sarney e Maluf representam?
Sarney ganhou de bandeja o poder, carrega aquela merda toda da ditadura. O Maluf... sou paulistano, qualquer paulistano que pensa tem aversão a ele. É o primeiro dos mauricinhos, perfumado, com corrente de ouro. O movimento da boca dele... [faz uma careta]. Tenho problemas com a anatomia do Maluf.

Já encontrou com eles?
Quando fui homenageado com a ordem do mérito cultural, lá em Brasília, o [senador Eduardo] Suplicy me levou pra conhecer o Senado. De repente, entra na sala do Sarney. Fiquei incomodado. Aí ele levanta e fala, segurando minha mão: “Você é o melhor”. Pra mim foi uma derrota, saí de lá cabisbaixo. Sempre fui cruel nas charges com Sarney, mexi com a família toda, e não funcionou...

E o Maluf?
Também encontrei uma vez, no aniversário de 80 anos da Folha. Fui pego de surpresa, o máximo que consegui foi falar “já fiz muito charge do senhor”. E ele [imitando a voz do Maluf]: “Vai fazeeeendo, vai fazeeeendo!” [risos]. O perfume dele ficou na minha mão... Ele tem alguma distorção mental.


O que você acha da Dilma?
Uma candidata feita às pressas, tirada do nada. Não quer dizer que seja a pior candidata. Com o mensalão, o PT ficou sem quadros, né? A Dilma é uma incógnita, não dá pra saber o que ela é.

Serra?
Serra é o Serra de sempre, centralizador, egocêntrico. Capitaliza até projeto dos outros: “Eu criei tal coisa...”. Depois vem um cara que fala que não, e o Serra diz “mas fui eu que tirei do papel”. Aquele papo...

E a Marina?
Gosto do papo dela. Me incomoda um pouco essa coisa religiosa, mas até agora não vi ela misturar as coisas, como vários políticos fazem. Acho interessante o pensamento dela sobre o meio ambiente.

O pessoal te chama para esses encontros de candidatos com artistas?
Chama. Não vou. Não me interessa conhecer esses caras. Se o cara é meio legal, você acaba gostando dele. Não quero gostar...

Você é do contra?
[Ri] Hum, acho que sou, sim.

Existe humor a favor?
A publicidade faz, eu não consigo. Quando começou o PT, muitos cartunistas começaram a fazer humor a favor. O próprio Henfil [1944-1988] fez. Isso me incomoda. A função do cartunista é alfinetar, levantar discussão.


Está mais difícil ser politicamente incorreto?
É, as pessoas estão cercando os incorretos... Não desenhe isso, não desenhe aquilo. Algumas tiras causam problemas. Fiz uma, da série “Lovestórias”, em que uma mulher falava: “Você não me toca há muito tempo”. Aí o cara levantava, cobria a mulher de porrada e voltava: “Pronto, já toquei”. Recebi várias cartas dizendo que eu tava propagando a violência contra a mulher... Não percebem que o ridículo da história é o marido.

Os Skrotinhos são os personagens mais politicamente incorretos...
Meu papo sempre foi mais com delegacia de costumes do que com delegacia de política. Nas vezes que fui preso, foi por maconha.

Quantas vezes foi preso?
Quatro, todas parecidas, por causa de baganinha no bolso... Na primeira vez, tava com dois amigos no carro, chapados. Um deles gritando pela janela. A polícia civil cercou a gente no Pacaembu, perguntou se tava com alguma coisa. Disse que não, mas encontraram. Aí tiraram minha roupa, bateram, me arrastaram pelo cabelo. Eu tinha cabelo comprido.

Você foi hippie?
Peguei o fim da era hippie. Tive brinco, chapéu de couro, bordava coisas na calça, usava blusão igual o do Neil Young, com franjas...

Mas depois virou punk...
A gente sempre ia na porta dos colégios ver as mulherzinhas. O namorado de uma menina veio tirar satisfação de alguma coisa, e a gente já foi cercando o cara. Ele ainda falou “vocês não são de paz e amor?”. Paz e amor o cacete, quebramos o cara. Foi aí que deixei de ser hippie [risos]. Não existia punk nessa época. Depois, li um livro do [escritor Antônio] Bivar...


O que é punk.
Esse. Antes, eu tava muito reticente com punk. Achava que era modinha importada, não tava entendendo direito. Quando li o livrinho, vi que era a minha turma.

Deve ser a única pessoa que virou punk por razões intelectuais.
[Risos] Quando fiz o Bob Cuspe, era pra gozar os punks. Comprei o livro do Bivar pra me embasar, aí comecei a achar do caralho. Falei: “Sou da Casa Verde [bairro classe média baixa da zona norte de São Paulo], do lado do rio Tietê, que é o cu da cidade, saindo um monte de merda... isso é punk”. Tive um período ali em que me perdi um pouquinho. Tinha 18 anos, andei com bandidagem.

Como foi?
Só queria fumar. Como não tinha dinheiro, ficava onde podia surgir alguma coisa. Uma vez, participei de um assalto a uma farmácia sem saber. Tava no carro cheio de caras e falaram: “Fica aí, a gente vai ali...”. De repente, vejo os caras assaltando, sem tiros, mas com a violência necessária para assaltar. Quando vi aquilo, pensei “puta, onde me meti”...

Todos seus personagens são meio errados.
Às vezes me pergunto por que essa fascinação pelo outsider, pelo cara que não dá certo, que anda torto... É tão natural pra mim. Fui caindo nessas coisas. Se vou criar um personagem, logo vou pro cara mais roto, mais esfolado. Pô, morava ao lado de um bar do tráfico. Mas o tempo todo sabia que aquela não era a minha. Quando apareceu a possibilidade de trabalhar na Folha, saí dessa.

Como é trabalhar há 37 anos no mesmo lugar?
É gozado, porque todo mundo sai do jornal, vai parando... Nunca quis sair da Folha e a Folha nunca quis que eu saísse de lá. Não sou funcionário, tenho um contrato e mando nota. Isso inclui tira todo dia e charge quatro vezes por semana. Paga minhas contas.


Quantos desenhos já fez?
Fiz uma conta por cima: uns 28 mil. É que, porra, são 37 anos trabalhando diariamente.

A revista Chiclete com banana chegou a vender 115 mil exemplares. Ganhou dinheiro?
Ganhei, deu dinheiro. Deu, mas já foi...

Em quê?
Mulher, drogas... [risos]. Gastei tudo, cara. Dei um jeito na vida de familiares, ajudei filhos. E separação sempre acaba levando parte do dinheiro pra longe. Mas não lamento, não.

Conseguiu formar um patrimônio?
Nenhum. Este apartamento é alugado. Comecei a me preocupar com isso recentemente, quando você tá ganhando dinheiro, parece que nunca vai acabar. Demorei muito pra ter consciência disso. Comprei um apartamento em Higienópolis [bairro classe média alta na zona central de São Paulo], e tô reformando. Não quero ficar velho e não ter nada. Conheci pessoas que se foderam, tipo o [escritor] João Antônio, o [poeta] Roberto Piva... O que vale ser um cara que fez o que queria, se depois não tem uma cadeira de balanço pra sentar?

Hoje você ganha bem?
Ah, razoavelmente. Acho que poderia ganhar mais... O que não posso é trabalhar mais. Trabalho no limite, faço muita coisa. Durmo pouco, umas quatro horas por noite.

Sempre teve insônia?
Desde moleque. Pra mim funciona muito o silêncio da noite, traz a possibilidade de criar. Nunca quis tomar remédio. Se dá um soninho [de dia], durmo 10, 15 min... Funciona.


A que horas você vai dormir?
Deito às quatro da manhã e às 8h30 já sento na prancheta pra fazer tira. Depois sai aquela bosta... [risos]. Entrego pro jornal antes do meio-dia. A partir de uma da tarde, fico mexendo na charge, só vou terminar às oito da noite, quebrado com o problema na coluna que todo desenhista tem. Tenho artrose, o osso gasta pela forma de ficar sentado. Vou comprar uma cadeira especial. Devia fazer fisioterapia ou exercício, mas... Cuido bem do meu desenho, não da saúde...

Quanto você fuma?
Já fumei quatro maços por dia, hoje são dois e meio. Tô chegando num ponto em que o prazer tá indo embora. Tá começando a bater preocupação, médico falando... Não consigo parar ou diminuir. Comecei com 9 anos, pegava escondido as bitucas do Continental sem filtro que meu pai fumava.

E quando começou a se interessar por política?
Bem moleque, ali por 64, sabia que tava acontecendo uma coisa estranha no país. Em casa ninguém ligava pra política, era só trabalho. Mas lembro do meu pai falando pro meu tio ter cuidado com um gorro vermelho, que “os caras estão pegando”... [Pausa] Por que a gente tá falando disso?!

Você tava contando como começou a se interessar por política.
É, tinha um amigo que comprava O Pasquim, aí comecei a perceber melhor as coisas. Um vai trazendo outro, e forma um grupinho que começa a falar de coisas que antes você ouvia, mas não entendia o porquê. O Pasquim me influenciou muito.


O que é política para você?
Não entendo nada de política. Minha posição é mais anárquica, vejo política como algo viciado, que acaba comendo seu próprio rabo.

Como acompanha a política?
Fico atento ao noticiário. Vejo os jornais da TV, menos os da Record, por causa do negócio dos bispos. É tendenciosa, preconceituosa. Acompanho o site do Millôr, leio [o colunista da Folha] Fernando Rodrigues. Lia jornais pela manhã, até ver que tava sendo influenciado pela opinião deles. Agora leio à noite, depois que faço a charge. Vejo a Folha, o Globo. Estadão não, nunca tive simpatia.

É diferente fazer charge política ou quadrinhos de comportamento?
Para mim é tudo a mesma coisa. Olho da mesma forma tanto para o comportamento quanto para a política. Mesmo nas charges, penso como um crítico de comportamento. Todo político acaba tendo o mesmo...

Está mais ligado no comportamento político do que nos políticos em si.
Sim. Tem cara que faz charge do vice-vereador da subprefeitura. Aquele sujeito, que é um bosta, vira personagem. Prefiro não dar cara, eliminar o rosto. Trato esse baixo clero como um monte de carne, uma coisa só. O perigo do chargista é transformar certas figuras da política em bonequinhos engraçados.

Suas charges têm alguns temas recorrentes, como os políticos em miniatura, as pessoas meio homem meio dinossauro, a invasão de jacarés...
Tem também a coisa das pessoas retorcidas e das pessoas grudadas umas às outras. Uma hora descubro uma chave que possibilita piadas. Acaba virando uma espécie de bordão, um bordão gráfico. Uma hora percebo que preciso dar uma parada com o bordão...


Ou vira Zorra total.
Exatamente. O bordão surge quase sem querer, não tem uma explicação, vou desenhando. Não tenho método. Na verdade, isso tem muito a ver com a minha história pessoal. Fui o pior aluno possível, passava o dia olhando pro teto. Fui mandado embora das escolas.

Quanto você estudou?
Tive uma formação das mais precárias. Repeti a quinta série três vezes seguidas e fui expulso. Já tava estranho, porque era um monte de garotinhos e eu já com umas penugens, um bigodinho, a voz mudando...

Sente falta de estudo?
Ah, tem horas que sinto. Poderia ser um cartunista melhor. Luto com a gramática até hoje. Na época que comecei a desenhar, ficava em pânico porque não sabia escrever. Sabia deixar um bilhete, deixar um recado. Vi que precisava ter mais atenção a isso.

Texto é importante no seu trabalho.
Muito, meus personagens não se movimentam, só param e falam. Sempre tive clareza de como construir texto, o que é o começo, o meio e o fim. Consigo levar o leitor para onde quero que ele vá. Meu problema são as regras... Acho que tenho uma leve dislexia, até hoje troco o F e o V, o Q e o G.

Fala inglês?
Tive aula de inglês com uma punk americana, casada com um amigo. Ela tinha a linguagem da rua. Só que, quando ela chegava, a primeira coisa que eu fazia era um baseado... Fiz dois anos, mas esqueci tudo. As coisas que me interessam dou um jeito de entender. Tenho no computador um arquivo de letras traduzidas do Bob Dylan, um cara que adoro.


Já se sentiu intimidado por não ter uma formação melhor?
Nunca me senti completamente intimidado, porque tudo que não sabia escrever, sabia falar. Entrava bem em situações de contestar pessoas.

Alguma acabou em briga?
Falavam que meu trabalho servia à direita, por eu não tomar partido [da esquerda]. Nunca quis servir ninguém. Ainda trabalhava na redação da Folha, quando perdi a paciência e fui pra cima de um cartunista que era o radicalzinho em pessoa. Foi vidro de guache estourado na parede, tinta nanquim no chão... A turma do deixa-disso separou, inclusive o Boris Casoy [ex-diretor de redação do jornal].

Na época, era obrigatório escolher um lado.
Mas eu pensava que era possível você ter um lado e ser crítico com esse lado também. Disso saiu meu personagem Meiaoito, que fiz pensando nos bêbados da noite que se sentiam Che Guevaras de plantão...

Olhando as charges do período FHC, você batia forte. Na era Lula, também. Você é a favor de alguma coisa?
Sou a favor do grande orgasmo universal [risos].

E, se fosse você o presidente, qual seria sua primeira medida?
Chorava... Não queria essa função.

O que faria sobre o aborto?
Sou a favor de legalizar. Faz parte do direito de cada um sobre seu próprio corpo, e corpo inclui também sua mente, o que você pensa. Estão limitando esse direito cada vez mais. Ultimamente as coisas estão tão limpinhas... As pessoas estão tentando limpar tanto o mundo, que daqui a pouco a gente vai ficar pálido.


Sexo é uma coisa suja é o título de um livro seu. Você se sujou bastante?
Me sujei bastante, sou bastante sexual. Aproveitei muito, às vezes com critério, às vezes sem. Uma época o Chiclete com Banana me proporcionou uma coisa próxima de pop star. Aí era foda, não precisava nem me mexer.

Foi bom pra você?
Foi, matou a vontade.

Foi bom pros outros?
Já ouvi crítica pra caramba... Era meio compulsivo. Quando se é assim, a qualidade vai pras picas... ou pra qualquer outro lugar.

Fez tudo que queria fazer?
Ah, tem um cachorrinho que não comi [risos].

Ménage?
Fiz.

Suruba?
Fiz.

Homem?
De jeito nenhum! Não tenho atração. Já tive que ser elegante pra escapar, porque neguinho não perdoava... Teve época em que ter amigo gay era meio estranho pra mim, hoje é bastante normal.

Você está no terceiro casamento, todos longos. Seus relacionamentos eram abertos?
Não, era cafajestagem mesmo. Ao contrário de hoje. Respeito mais a relação com a Carol do que respeitei as outras. Entendi o valor de viver uma coisa plena, um amor cuidado.

Voltando à sua presidência, e o casamento gay?
Sou a favor, tenho amigos gays, são pessoas que merecem casar, adotar filhos... Não quero mais ser dirigido por um bando de velhas corocas de direita.


E quanto à taxação de grandes riquezas...
Tenho problema com grandes riquezas, tem que taxar sim. Tem gente que construiu tudo em cima de um objetivo muito vazio, que é o enriquecimento próprio. Tudo que é muito pode ser dividido. Sou um proletário, né?

Legalização das drogas?
Fiz até charge sobre isso, quando uns traficantes queimaram uns ônibus lá no Rio. Era uma cena de anarquia, ônibus pegando fogo e tal... Aí um cara falava: “Como você pode ser a favor da legalização? Está querendo que a gente viva numa anarquia?”... A gente já vive na anarquia, só que é anarquia de direita. Traficantes são de direita, querem que as coisas continuem assim para sempre, é o negócio.

Quando experimentou maconha?
Tinha uns 12 anos. Um primo tinha uma baganinha... Lembro que experimentei e ficava olhando no espelho pra ver se minha cara mudava ou entortava... Não entortou. Acho que é por isso que fumo diariamente até hoje...

Você usou muita cocaína.
Consumi todo dia por uns dez anos, tenho tendência a viciar nas coisas. Parei há muito tempo, mas de vez em quando parece que ainda sinto o cheiro...

Teve alguma overdose?
Já achei que tava tendo um ataque cardíaco. Morei dois anos com um cara que sempre tinha uma pacoteira de pó. Ele ia viajar e eu assaltava a gaveta dele. Uma vez, fui lá e mandei uma fileira enorme. Gelou meu corpo inteiro, garganta, peito, tudo. Falei, fodeu! Achei que era um ataque mesmo. Fiquei ali parado um tempão, passando mal. Era xilocaína, o cara ia misturar. Quando passou, tomei um banho e fui na verdadeira.

Como conseguiu parar?
Tava há umas três noites virado, uma caveira ambulante. Meu filho, com 4 anos, acorda todo feliz: “Vamos na pracinha?”. Fui e passei muito mal, queda de pressão, suor... Meu filho me puxando e eu sem energia nenhuma. Achei degradante ver ele brincando sozinho e o pai assim mal. Decidi que nunca mais usaria. Consegui parar sem a dificuldade que todo mundo dizia que seria. Pra me defender, desenvolvi um discurso.

Qual?
Que cocaína é de direita e maconha é de esquerda. Maconha é socializante, todo mundo fuma no mesmo baseado e dá risada depois. Cocaína, não. É de quem tem, e você se submete a esse poder pra cheirar uma fileirinha no cantinho do mármore do banheiro.

Heroína?
Experimentei uma vez, esfregando na gengiva, não bateu... Tenho problema com agulha... Existia um negócio chamado Pervitin, uma ampolinha que toma nos canos, lá na Casa Verde todo mundo tomava. Como tenho medo de injeção, tomei pouquíssimo, nunca foi o meu barato. Já estava meio contra essa ideia de drogas desse tipo, que encampam você todo e você não consegue reagir.

Tipo ácido, ayahuasca?
Devo ter tomado uns 15 ácidos na vida. Tive viagens maravilhosas, nenhuma bad trip. Mas tenho essa coisa de virginiano, parece que nada me pega por completo, não me deixo levar. Tomei Daime uma vez, porque o Glauco era ligado a isso. Não senti absolutamente nada. Uma vez, tava com ele e mais umas pessoas, à noite numa praia. Todo mundo tinha tomado. O Glauco falava: “Olha isso...”. E eu: “Glauco, isso já tá aí faz tempo, essa Lua é bonita com ou sem essa porra!” [risos]. Ele ficava puto.

Deve ter sido difícil perder um amigo tão próximo.
Tem coisas que só o Glauco sabe que vivi [o cartunista Glauco e seu filho Raoni foram assassinados em março deste ano]. A gente correu o Brasil juntos, lançando revistas, entrando em cada furada... Um amontoado de bebedeiras, palhaçadas, sexo malfeito e drogas. Ele era praticamente padrinho dos meus filhos, vi nascer os filhos dele, participei de tudo isso. Criou um buraco na minha história.

Qual foi a última vez que você encontrou o Glauco?
No começo de 2009, numa reuniãozinha que a gente fez pra escrever uns roteiros para uma animação de Los 3 Amigos [série de quadrinhos desenhada a seis mãos por Angel Villa, Glauquito e Laerton].

Por causa do Los 3 Amigos, parece que vocês estavam sempre juntos.
Tinha uma época que era assim. Principalmente eu e o Glauco, que também tinha essa sede de noite, mulheres, se drogar... O Laerte sempre foi mais brando. Mas quando o Glauco entrou nessa coisa da igreja, de Daime, aquilo tomou conta da vida dele.

Como ficou sabendo da morte dele?
Tocou o telefone de manhã, mas não atendo porque faço a tira. Abaixei o volume da secretária eletrônica e não escutei quem era. Era o Adão [Iturrusgarai]. Na mesma hora, eu tava ligando o computador e apareceu a cara do Glauco na primeira página. Não acreditei... Fui sentir mesmo a morte dele quando fiquei em frente ao caixão.

O que você lembra do enterro?
Não lembro muito do entorno, de quem estava lá... Vou direto naquilo que me dói. Foi muito forte ver o Raoni no caixão, o filho dele... [emocionado]. Ele adorava o tio Angeli, era um garoto doce, inteligente. Na verdade, ainda não sei explicar muito bem o que senti. Tem momentos em que penso em alguma coisa e falo “ah, vou ligar pro Glauco”, aí lembro que o cara morreu...

Você acredita em Deus?
Não, nunca acreditei... Mas cheguei a ser coroinha, por um dia.

Um dia?
É, quebrei aquela merda em que coloca incenso. Foi sem querer, eu tinha que virar o negócio, virei muito rápido e, pow!, pulou cinza no meio da missa. O padre ficou puto.

Como está sendo envelhecer?
Tem coisas muito legais, como não se importar mais com coisas pequenas, não dar importância pro que não tem. A parte ruim é que me sinto com menos energia. Um dia fui numa padaria com a Carol e fiquei sentado esperando ela comprar alguma coisa. Quando ela voltou, eu tava cochilando...

Alguma consequência do uso intensivo de drogas?
A cocaína me debilitou um pouquinho. Maltratei meu pulmão mais que um simples fumante. Porque você fica mais tempo acordado, fuma muito mais e bebe bastante pra baixar a bola da cocaína.

Tem medo de morrer?
Não sei se tenho medo de morrer... Acho que tenho é pouco tempo pra fazer as coisas que quero. Sou pretensioso em relação ao que vou deixar. Olho muito o trabalho do Millôr, de pessoas que já morreram, como [os desenhistas] Raul Pederneiras e J. Carlos, e vejo o que eles deixaram.

Como quer ser reconhecido?
Não tenho reclamação. Tenho o reconhecimento que mereço e, às vezes, até o que ainda não mereço. Ouvi coisas como “você é gênio”... É impossível eu ser gênio, sei das dificuldades que tenho.

Conhece algum gênio?
O Laerte é gênio.

_______________________

Fonte: Trip

domingo, 29 de agosto de 2010

O polo da vez no Recife

Aos poucos, sem fazer muito alarde, a Rua do Lima se tornou o polo alternativo mais movimentado da cidade
Carolina Santos
carolinasantos.pe@dabr.com.br

Foi rápido, mas não de um dia para o outro. No começo, mal se notava. Pareciam ações isoladas. Um evento aqui, outro acolá. De repente, numa noite, a rua estava cheia. Na outra, também. E assim os fins de semana iam passando e a movimentação crescendo. Não eram somente bares com mesas nas calçadas. Era música, teatro, artes plásticas, fotografia, instalações, moda. Pronto. Não há mais como não notar. Há um novo polo cultural no Centro do Recife. E ele começa a pulsar e ferver nos dias e noites da Rua do Lima. Cheios de histórias para contar, esses 450 metros de asfalto se consolidam como o ponto de encontro para quem está atrás de diversão e arte.


Foto: Guga Matos/Divulgação
A nova fase da Rua Capitão Lima, seu nome oficial, começou há pouco mais de um ano, com a inauguração de espaços híbridos - aqueles locais que juntam comércio e arte num ponto só. O primeiro deles foi o Acre, em junho do ano passado. "Acho que a Rua do Lima recebe um pouco do perfume cult que a Aurora ganhou nos últimos dez anos. Tem também um pouco do histórico da rua e a necessidade das pessoas por um polo alternativo. O Recife Antigo tem decaído muito. É tanta história de criminalidade, mendigos e crack, que quem ia para o Recife Antigo prefere hoje ir para Rua do Lima", acredita o estilista Cássio Bomfim, dono da Acre. "Mesmo não tendo atração musical, sempre tem uma exposição, bons locais para comer. É uma boa pedida", atesta o músico Léo Stegmann, frequentador da Rua do Lima.

Depois da inauguração da loja Acre vieram o Banquete, Espaço Muda, Nave. O público do Quintal do Lima, que já movimenta a rua há cinco anos, acabou se integrando com os demais espaços. "Viemos para cá porque todos os nossos amigos diziam que aqui era a área que estava mais crescendo no Centro", lembra Ester Aguiar, uma das sócias do Banquete, aberto há menos de um ano.

Pontos fracos, pontos fortes - Na Rua do Lima, verdade seja dita, não há a ação ostensiva de flanelinhas como ocorre no Recife Antigo. Pedintes são raros. A questão da violência parece ser mais branda do que em outras partes do Centro. O caso mais grave ocorrido nos estabelecimentos ouvidos pelo Diario foi o furto de bombas d'água. Como a rua fica perto da Secretaria de Defesa Social, há sempre viaturas passando, o que inibe os criminosos. Assaltos a mão armada, por exemplo, nem os moradores mais antigos lembram de ter visto. O problema mais citado pelos estabelecimentos é a coleta de lixo. "É muito iregular. Tivemos até que fazer um acordo com a síndica do prédio ao lado porque não tínhamos espaço para guardar o lixo até o caminhão vir buscar", reclama Jorge Feó, do Espaço Muda.
______________________________

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O bustiê roxo e os festivais na Paraíba de 60, 70, 80…

Foi 21 de outubro de 1967 o dia em que a música brasileira teve um dos marcos da sua história. No Teatro Paramount, em São Paulo, acontecia a final do III Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, onde, diante de uma plateia fervorosa e disposta a tudo, alguns dos artistas hoje considerados fundamentais para a MPB se revezavam no palco para competir entre si. A partir desta noite brilharam Caetano, Chico, Gil, Edu Lobo, Mutantes e outros nomes que o documentário ‘Uma Noite em 67’, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil e lançado recentemente, mostra de maneira inusitada, revelando bastidores inesperados.

Mesmo sem previsão de estrear nos cinemas da Paraíba, o tema do documentário reaviva memórias que também fazem parte da história da música paraibana e acende a discussão sobre a utilidade dos festivais que revelaram grandes nomes Brasil a fora, e na Paraíba também. Se a nostalgia é tão necessária, não dá pra fugir da reflexão sobre o papel que esses espaços representavam e lembrar de como essa realidade nacional se refletiu na música paraibana.

As canções daquela última noite se tornariam emblemáticas, mas até aquele momento permaneciam inéditas. Entre os 12 finalistas, Chico Buarque e o MPB 4 vinham com “Roda Viva”; Caetano Veloso, com “Alegria, Alegria”’; Gilberto Gil e os Mutantes, com “Domingo no Parque”; Edu Lobo, com “Ponteio”; Roberto Carlos, com o samba “Maria, Carnaval e Cinzas”; e Sérgio Ricardo, com “Beto Bom de Bola”.


Enquanto isso na sala da justiça


Chico Ramalho e os compactos gravados nos festivais

E enquanto tudo explodia em São Paulo, o que acontecia em terras paraibanas? Também na década de 60 os festivais explodiram por aqui e revelaram nomes como Vital Farias, Chico César, Elba Ramalho, Zé ramalho, Kátia de França, Glorinha Gadelha, Marcus Vinícius, Pedro Osmar e muitos outros.

Na década de 60 os ecos desses festivais nacionais começaram a se propagar pela Paraíba. O radialista Francisco Ramalho, o Chico Ramalho, lembra dos primeiros festivais, nos quais se envolveu na divulgação e apresentação. Em 16 de janeiro de 1965 foi realizado o I Festival de Bossa Nova da Paraíba, organizado pelo Centro de Arte e Cultura (CAC), que envolvia Manfredo Caldas, Guy Joseph, Marcus Vinicuis e Carlos Aranha. Chico conta que o Festival, que não era competitivo, lotou o Teatro Santa Roza na tarde chuvosa de sábado para espanto dos organizadores que não acreditavam muito que aquela idéia podia dar certo.

Tanto deu que, embalado no mesmo clima, em 1967 foi realizado o I Festival Paraibano de MPB, organizado por Expedito Pedro Gomes e que teve mais quatro versões, de 1968 a 1971. Esta primeira edição já teve caráter competitivo e apresentou como ganhador do primeiro lugar Zé Pequeno e Genival Veloso com a música ‘O repente’. Com o segundo lugar ficou ‘Meação’, de Luiz Ramalho. O sucesso foi tanto que o II Festival Paraibano de MPB aconteceu logo no ano seguinte, em abril de 1968, e trouxe como ganhadores Luiz Ramalho com a música ‘O Tropeiro’, e Vital Farias e Jomar Souto com a canção ‘Eu sabia, sabiá’.

O resultado desses dois festivais está gravado em dois compactos cujos últimos exemplares estão com Chico Ramalho, que também tem as apresentações gravadas em fita cassete. “Naquela época os festivais eram um sucesso. Havia o interesse das gravadoras, é claro, principalmente nos grandes festivais nacionais, mas os artistas não tinham os mesmo espaços que tem hoje para mostrar seus trabalhos e era uma oportunidade especial de se apresentar e interagir com o público. O Teatro Santa Roza ia a loucura com os shows”, recorda Ramalho.

Em 1969, era tão grande o interesse da cidade pelo festival, que ele foi realizado num espaço bem maior, o ginásio do Clube Astréa, com transmissão direta da Rádio Arapuan, de onde Ramalho era diretor.

Quando perguntando se hoje o fato de não existirem mais festivais com esses formatos afetaria de maneira negativa as oportunidades dos novos artistas mostrarem seus talentos, Chico avalia que não. Segundo ele, na conjuntura de hoje não cabe mais esse tipo de proposta. “Hoje existem outras maneiras de divulgar os trabalhos e os próprios artistas não se interessam mais. Em um dos últimos festivais que aconteceram por aqui tivemos que solicitar que os cantores e compositores se inscrevessem porque ninguém se habilitou”, avalia Chico.


O bustiê roxo de Carlos Aranha


Carlos Aranha no Festival Paraibano de MPB

O jornalista e compositor Carlos Aranha, que participou ativamente de todas as edições dos festivais, lembra da revolução que as iniciativas causaram. O jornalista relata que concorreu em 1968 no II Festival Paraibano de MPB com duas músicas: “Giramulher”, em parceria com o irmão, o pianista Fernando, e “Canção do ter’, com letra de José Nêumanne.

“ ‘Giramulher’ ficou em segundo lugar com mais da metade do público vaiando o júri durante mais de três minutos, porque era a música que “caiu no gosto”. Uma revolução. Parecia coisa assim tipo, Beatles em sua primeira fase. Fui acompanhado pelos Quatro Loucos, uma banda que tinha Zé Ramalho fazendo a guitarra-base. Fizemos o que a juventude queria”, lembra Carlos Aranha.

Usando um bustiê roxo, uma calça verde de veludo, um colar de couro com o símbolo “hippie” e batom nos lábios, em 1969 Carlos Aranha conta que abalou as estruturas do Astréa com a música “Ivone, pelo telefone”. Mas a irreverência não agradou muito os jurados que deram a canção a colocação de 10º lugar. Em 1970, concorreu com “Objeto de utilidade pública”, que ficou em quarto lugar. Mas em 1971 ganhou os prêmios de 1º e 2º lugar, melhor letra e melhor intérprete, no Festival Campinense da Canção com as músicas “Caminheiro”, em parceria com Gilvan de Brito, e “Por qualquer cem mil réis”, parceria com Cleodato Porto.

Depois de toda efervescência, os festivais deram uma parada e só foram retomados quase uma década depois com o Festival do Sesc, dos quais o compositor ainda participou de algumas edições e entrou em 1990 com “Sociedade dos poetas putos”.

Carlos Aranha Festival de 1968

“Esse modelo de festival começou a declinar com a censura, a forte intervenção da ditadura militar. O segundo motivo foi a queda da qualidade nas letras, que começaram a não mais entusiasmar a maioria da juventude. Falo da juventude engajada. Por que? Surgiram compositores que passaram a não querer dividir a autoria com nossos melhores poetas”, avalia Carlos Aranha.

Para o jornalista, o modelo daqueles festivais estava afinado com a época, com a resistência à ditadura, com a busca da liberdade plena. Seus produtores pensavam como os compositores e produtores hoje pensam somente em ganhar dinheiro ou em ter uma boa assessoria, salvo algumas exceções.

Então, se os festivais eram vitrine para novos artistas, estaríamos perdendo um forte instrumento de divulgação com a falta de realização desses eventos? Eles deixaram de ser úteis pela diversidade de formas de divulgação que temos hoje? Carlos Aranha acredita que não há diversidade de formas de divulgação. “O rádio e a televisão, nem pensar. Quando se fala em Internet pode fazer uma pesquisa: quem está invadindo a área é somente o pessoal do rock, que é muito bom. Os demais são acomodados e preferem as “velhas formas de viver””, diz o compositor.

Ele afirma que a maioria dos compositores não usam bem a Internet, ou simplesmente não usam. “Enfim, acredito que essa coisa da Internet chegará ao ponto de uma explosão no meio de nichos bem localizados e as pessoas de música vão ter que sentar com os tais agentes culturais e começarem um novo ciclo. É coisa para mais uns cinco ou dez anos”, profetiza Carlos Aranha.


“A jaula está dentro de nós”


Cantor, compositor, músico e instrumentista Pedro Osmar

Talvez a nova geração que curta a música do Jaguaribe Carne nem saiba que o grupo surgiu em um festival realizado no Liceu Paraibano em 1974. O cantor, compositor, músico e instrumentista Pedro Osmar, lembra não só desse, mas de outros festivais que aconteceram também entre a década de 80 e 90.

O músico não lembra detalhes de datas, mas registra o Festival Universitário da Música Paraibana, que acontecia no Unipê, o festival do Cefet-PB, outro realizado na UFPB, um de música carnavalesca organizado pela Funjope, entre alguns outros pontuais.

“Dentro deste cenário nacional, a Paraíba foi o primeiro Estado do Nordeste a realizar festivais. Não há dúvida que eles deram visibilidade a toda uma geração de artistas e numa ponte entre intelectuais e artistas da Paraíba e de Pernambuco revolucionaram o modo de fazer música em um movimento que daria origem ao Tropicalismo”, afirma Pedro Osmar.

Para as novas gerações, o músico deixa a pergunta: “Por que vocês não querem mais festivais?”. Pedro afirma que a MTV e a geração que ela arrasta acabou com a cultura local e que o momento pós ditadura militar acalmou ânimos e atitudes. “Tivemos uma realidade cultural desmontada pela ditadura. Enquanto existia a censura existia a rebeldia e o esforço criativo para falar o que queríamos sem sermos presos. As novas gerações devem se perguntar o que estão fazendo”, alfineta Pedro Osmar.

Na opinião dele, aquela época não volta mais. O formato daqueles festivais competitivos não funcionaria na atual conjuntura.

Numa analogia com o processo de democratização, Osmar reflete: “Criava-se um animal numa jaula. O animal foi crescendo, crescendo, mas a jaula não foi trocada por uma maior. Agora o animal está enorme e onde foi parar a jaula? A jaula está dentro do animal. A jaula está dentro de nós”.


E agora, josé?


Hoje, as iniciativas exploram novos formatos e um dos festivais firmados no estado é o Festival Mundo, organizado pelo Coletivo Mundo. O Festival anual de arte independente é realizado desde 2005, em João Pessoa, e integra em sua programação shows, exposição de artes plásticas, mostra audiovisual, feira de empreendedorismo cultural, debates e oficinas.

O Festival Mundo não tem caráter competitivo e reúne na Capital paraibana bandas independentes de todo o país. É filiado a Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin) e já recebeu artistas, produtores e jornalistas de renome nacional e internacional.

Seriam hoje festivais como o Mundo, a nova forma de expressão de uma juventude que está sempre em busca de novas maneiras de grito? Para Carlos Aranha, não existem mais festivais hoje, existem mostras. “Pra ser sincero, só detecto fruições e movimentos novos, hoje em dia, no rock’n'roll. Vejam aqui na Paraíba a qualidade e a continuidade de ser rebelde, mas à procura de um mercado, que está no Festival Mundo, tendo esse Rayan Lins à frente. Baterista e agitador cultural, Rayan é o Pedro Osmar do século 21, com outra linguagem, é claro. Estou falando é da questão do ativismo. Prestem atenção nas ações do Coletivo Mundo”, registra Carlos Aranha.

.

_______________________________________________

*Matéria publicada no Caderno 2 do Jornal Correio da Paraíba em 15 de agosto de 2010.

Texto: Renata Escarião

Fotos: Dayse Euzébio e Assuero Lima