CRÍTICA & AUTOCRÍTICA EM SGT. PEPPER, 40 ANOS
A OBRA-PRIMA POP DOS BEATLES CONTINUA A ENTERNECER CORAÇÕES SOLITÁRIOS
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Texto de André Singer
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.Chico Buarque de Holanda lembra, em “Paratodos”, que a música brasileira pode ser tomada como remédio. O mesmo raciocínio vale para o pop. Por isso, agora em junho, muitos usuários desse princípio ativo – a canção popular – comemoram o aniversário de Sergeant Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Se “contra a solidão agreste / Luiz Gonzaga é tiro certo / Pixinguinha é inconteste”, as treze faixas do disco dos Beatles são um verdadeiro elixir. Lançado em 2 de junho nos Estados Unidos, quando estava para começar o “verão do amor” californiano, o long-play chega aos 40 anos ainda com força para esquecer o mais renitente dos corações solitários.
Na aparência, ele fornece as alternativas da época para levantar o astral. A principal delas, fruto típico da estação em que foi gravado, entre 6 de dezembro de 1966 (“When I’m sixty-four”) e 20 de abril de 1967 (a reprise, modificada, da abertura), é lançar mão de aditivos químicos. Além da tradicional cannabis, as experiências com LSD se encontravam no auge. Apesar das menções psicodélicas literais e sonoras, é engano imaginar que Pepper se resuma a um elogio das drogas, ou da variante oriental de busca pela felicidade. Ao contrário, e nisso consiste a sua originalidade, ele critica várias formas de fuga do real.
Não foi por fazer um inventário de temas como ácido lisérgico e orientalismo que o sargento Pimenta entrou para a mitologia da cultura de massa como o melhor LP (hoje CD) da história do pop. A razão está na qualidade artística. Há uma longa e inacabada discussão sobre se objetos projetados para vender em larga escala devem ser consideradas obras de arte. Sem entrar nessa delicada seara, vamos convir, ao menos para efeitos desta análise, que os criadores do material que será depois transformado em mercadoria incorporam, com maior ou menor sucesso, elementos artísticos às etapas de composição, arranjo e interpretação das canções. Foi o êxito dessa absorção que garantiu a permanência das músicas de Sergeant Pepper’s. Como nota Caetano Veloso no livro Verdade tropical, “a lição que, desde o início, Gil quisera aprender com os Beatles era a de transformar lixo comercial em criação inspirada e livre, reforçando a autonomia dos criadores – e dos consumidores”. Em Pepper, os ensinamentos atingiram o seu zênite.
John Lennon e Ringo Starr, então com 26 anos, Paul McCartney e George Herrison, ambos com 24, tinham conseguido ótimas performances – ao vivo e em vinil – e ainda obteriam outras depois. Mas o disco de 1967 foi o ponto máximo alcançado pelo grupo que, pela última vez, funcionou plenamente como tal. John e Paul agiram em parceria e sintonia nos momentos decisivos dos quatro meses de gestação. Os quatro intérpretes se empenharam a fundo na execução do material. O produtor e maestro George Martin acrescentou, na medida certa, elementos incidentais e truques eletrônicos. Enquanto o LP de estréia dos Beatles, Please please me, foi quase todo gravado num único dia (11 de fevereiro de 1963), ocupando 16 horas de estúdio, Sgt. Pepper’s gastou 700 horas, a um custo aproximado de 25 mil libras esterlinas, um orçamento extraordinário para a indústria fonográfica dos anos 60.
O resultado obteve reconhecimento nas duas pontas da cultura. É um dos discos mais vendidos de todos os tempos – tendo atingido a marca de cerca de 10 milhões de cópias até o assassinato de Lennon, no final da década de 1970. Com o passar do tempo, acabou exaltado também pelos musicólogos, a ponto do inglês Allan Moore, professor de música popular da Universidade de Surrey, se perguntar se um “futuro dicionário de música terá uma entrada para ‘Sergeant Pepper’ em algum lugar entre ‘Schoemberg’ e ‘Sprechstimme’?” Sprechstimme é uma técnica vocal de “canto falado” que Schoemberg usa em Pierot Lunaire, de 1912. “Me parece que Sgt. Pepper vai, de fato, crescer para ocupar o espaço entre Schoemberg e sua voz e, assim fazendo, vai marcar uma mudança paradigmática em direção a uma apropriação e utilização dos materiais musicais mais flexível e menos guiado pela culpa”, conclui Moore, num livro de 1997, publicado pela prestigiosa editora da Universidade Cambridge.
Os jovens de Liverpool deixaram, em suma, um legado que lembra o de Shakespeare: feito para o povo e mais tarde adotado pela alta cultura. O crítico australiano Craig McGregor aponta outros exemplos de dupla aceitação (popular e de elite), como os romances de Charles Dickens e os filmes de John Ford. Poder-se-ia acrescentar os folhetins de Honoré de Balzac. Nessa linha, Pepper segue um roteiro que, sem chegar à chatice da ópera-rock, pede uma audição completa, para ser aproveitada a máximo.
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[Para ver a matéria completa é preciso COMPRAR a revista Piauí: http://www.revistapiaui.com.br/ -, nº 07, junho, p. 58-61. Quase todas as matérias dos números anteriores estão disponíveis aí]
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Capa do "Sgt. Pepper's", feita por Robert Fraser, Peter Blake e Paul McCartney. Abaixo, uma relação com os nomes (por número) das pessoas e coisas que aparecem na ilustração:
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1 Sri Yukteswar Gigi (guru) 2 Aleister Crowley (dabbler in sex, drugs and magic) 3 Mae West (actress) 4 Lenny Bruce (comic) 5 Karlheinz Stockhausen (composer) 6 W.C. Fields (comic) 7 Carl Gustav Jung (psychologist) 8 Edgar Allen Poe (writer) 9 Fred Astaire (actor) 10 Richard Merkin (artist) 11 The Varga Girl (by artist Alberto Vargas) 12 *Leo Gorcey (Painted out because he requested a fee) 13 Huntz Hall (actor one of the Bowery Boys) 14 Simon Rodia (creator of Watts Towers) 15 Bob Dylan (musician) 16 Aubrey Beardsley (illustrator) 17 Sir Robert Peel (politician) 18 Aldous Huxley (writer) 19 Dylan Thomas (poet) 20 Terry Southern (writer) 21 Dion (di Mucci) (singer) 22 Tony Curtiss (actor) 23 Wallace Berman (artist) 24 Tommy Handley (comic) 25 Marilyn Monroe (actress) 26 William Burroughs (writer) 27 Sri Mahavatara Babaji(guru) 28 Stan Laurel (comic) 29 Richard Lindner (artist) 30 Oliver Hardy (comic) 31 Karl Marx (philosopher/socialist) 32 H.G. Wells (writer) 33 Sri Paramahansa Yogananda (guru) 34 Anonymous (wax hairdresser's dummy) 35 Stuart Sutcliffe (artist/former Beatle) 36 Anonymous (wax hairdresser's dummy) 37 Max Miller (comic) 38 The Pretty Girl (by artist George Petty) 39 Marlon Brando (actor) 40 Tom Mix (actor) 41 Oscar Wilde (writer) 42 Tyrone Power (actor) 43 Larry Bell (artist) 44 Dr. David Livingston (missionary/explorer) 45 Johnny Weissmuller (swimmer/actor) 46 Stephen Crane (writer) 47 Issy Bonn (comic) 48 George Bernard Shaw (writer) 49 H.C. Westermann (sculptor) 50 Albert Stubbins (soccer player) 51 Sri lahiri Mahasaya (guru) 52 Lewis Carrol (writer) 53 T.E. Lawrence (soldier, aka Lawrence of Arabia) 54 Sonny Liston (boxer) 55 The Pretty Girl (by artist George Petty) 56 Wax model of George Harrison 57 Wax model of John Lennon 58 Shirley Temple (child actress) 59 Wax model of Ringo Starr 60 Wax model of Paul McCartney 61 Albert Einstein (physicist) 62 John Lennnon, holding a french horn 63 Ringo Starr, holding a trumpet 64 Paul McCartney, holding a cor anglais 65 George Harrison, holding a flute 66 Bobby Breen (singer) 67 Marlene Dietrich (actress) 68 Mohandas Ghandi (painted out at the request of EMI) 69 Legionaire from the order of the Buffalos 70 Diana Dors (actress) 71 Shirley Temple (child actress) 72 Cloth grandmother-figure by Jann Haworth 73 Cloth figure of Shirley Temple by Haworth 74 Mexican candlestick 75 Television set 76 Stone figure of girl 77 Stone figure 78 Statue from John Lennon's house 79 Trophy 80 Four-armed Indian Doll 81 Drum skin, designed by Joe Ephgrave 82 Hookah (water tobacco-pipe) 83 Velvet snake 84 Japanese stone figure 85 Stone figure of Snow White 86 Garden gnome Tuba
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Cultura
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Celso Loureiro Chaves*.
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Poucos se atreveriam a dizer que Sgt. Pepper's Lonely Heart Club Band ainda tem o ar da novidade, pois querer impor atualidade ao venerável álbum dos Beatles, com os seus 40 anos de idade, é ignorar que tudo aquilo é parte fundamental do seu tempo, é testemunho do seu tempo, é prisioneiro do tempo. Querer prolongar-lhe a novidade é roubar-lhe tanto o passar das décadas quanto todas as camadas de significação que se foram acumulando. Sou de um tempo em que Sgt. Pepper's ainda não existia. Quando passou a existir, lá estava eu na loja para comprar o vinil com sua capa emblemática e suas fotos internas um pouco ridículas. Mas basta ouvir os primeiros acordes da primeira música (e o som de público que os antecede) e logo me vem à memória o ano de 1967. É 1967 que volta. Não é hoje.
Toda música tem essa prerrogativa de estar aprisionada no seu tempo. Se Sgt. Pepper's adquiriu longevidade e perdeu atualidade, tanto melhor. Característica boa da música urbana, essa. É uma garantia de que os sons nos transportarão para um tempo que não vivemos ou, se vivemos, dele se apagaram alguns traços de memória que se redesenham com traços fortes, a um simples acorde, a uma simples inflexão de voz. Mas o que dizer de músicas que ainda fingem juventude mesmo tendo aparecido naquele mesmo ano de 1967? Sgt. Pepper's vem sendo ouvido, discutido e analisado desde então. Não é o caso da música de concerto de 1967, tantas vezes analisada, tão poucas vezes ouvida e ainda menos discutida. É a função dos gêneros musicais, me parece. Uns plantam-se firmemente no seu tempo e projetam-se na memória de tempos futuros. Outros permanecem enganadoramente jovens, como se música moderna fossem.
Foi no ano de 1967 que o alemão Karlheinz Stockhausen compôs Hinos, a sua peça eletroacústica principal. Quatro lados de vinil com variações infindáveis sobre hinos das nações, com um arrazoado ideológico tão complexo quanto a sonoridade da música. Hinos saiu de circulação e não foi mais ouvida. Mas, se ouvida hoje, seria ainda de vanguarda essa peça emblemática da vanguarda tardia que ecoa os anos 1950? Certamente não, tantas foram as águas passadas por baixo (e por cima) da ponte do eletroacústico. Mas assim parece, já que não nos acostumamos a ouvir Hinos e nem temos a dimensão precisa, nesse tipo de música, do quanto se prosseguiu desde então. Para ficar no território do eletroacústico, haveria que citar As Prateadas Maçãs da Lua, do norte-americano Morton Subotnick, também de 1967. Poucas obras eletroacústicas são tão hippies quanto essa, menos lunar do que pré-Woodstock, ares de outro tempo. Por falar em música hippie: Ecos do Tempo e do Rio, do também norte-americano George Crumb, é do mesmo 1967 e já tem todos os maneirismos pegajosos de obras posteriores: citações "espertas", instrumentação pretensamente exótica, temática apocalíptica. Outro caso é o de Lontano, de Gyögy Ligeti, peça orquestral que reveste uma outra peça sua, Lux Aeterna, de um caráter ainda mais dramático. Aliás, ninguém como Ligeti conseguiu viver as décadas com plenitude, se transformando sempre, mostrando que quem foi um em 1967 podia sempre se metamorfosear em outro, tão fascinante quanto, década a década. De hoje, essas obras? Em absoluto, só parecem assim se as ouvimos de supetão, sem nos darmos conta que Subotnick, Crumb, Ligeti e Beatles giram num mesmo universo temporal.
Há um dado incontornável que remete a música de concerto de 1967 ao passado que lhe pertence. Aquele foi o ano da publicação das últimas duas obras de Igor Stravinsky, uma delas os Cânticos de Réquiem, nos quais o compositor vela a si próprio e ao seu tempo. Ao pensarmos em Stravinsky, não há como fugir: é música do passado que estamos pensando. Beatles e Stravinsky convivendo no mesmo momento? Sim, o fato é esse mesmo. Nem um nem outros deixaram de se aprisionar em sua época e não vejo por que uma determinada música ainda possa ser considerada "de hoje", em detrimento de outras, ouvidas mais ou ouvidas menos. Radicalmente falando: nada do que apareceu na música de 1967 é música de hoje.
Existe, no entanto, uma diferença fundamental que marca e distingue Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band: esse álbum veio vindo conosco, passou a fazer parte da nossa bagagem e é dessa maneira que ainda é ouvido hoje, estendendo o largo tempo de quatro décadas e nos devolvendo a tempos passados, qual máquina do tempo. Nem Subotnick, nem Crumb, nem Reich, nem Ligeti - muito menos o último Stravinsky - vieram conosco. As audições são tão mais esporádicas que o sabor da novidade quase que se recria a cada nova ouvida, como se começasse do zero. Mas é só impressão. As décadas passaram para todos. Vem daí a conclusão óbvia: 1967 é 1967. Hoje é hoje.
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* Celso Loureiro Chaves, músico, escreve quinzenalmente no caderno Cultura do ZH
Zero Hora, Porto Alegre-RS, sábado, 9 de junho de 2007, p. 3