terça-feira, 2 de novembro de 2010

A VERDADE


“A verdade é um céu aberto. Narciso é um boboca. Ícaro levanta vôo.” (André Comte-Sponville, Tratado do desespero e da beatitude).


A verdade é uma garota dançando bêbeda, & deslizando sobre patins

Fazendo curvas sobre as pirâmides de vidro no Ponto de Cem Réis

& caindo sentada no colo de Livardo Alves, a quem chama de meu amor


A verdade é uma garota suada enxugando o rosto com a regata

Deixando o umbigo à mostra, & o seu piercing provocativo

Hipnotizada pela Lua clara que prateia a praça & ilumina a rua


A verdade pôs-se a galope em um vento litoral rumo a Epitácio

& chegou cansada no discurso do pregador de certezas certas

& escondeu-se na valise de latão que o poeta Caixa D’Água tem

& aí guardou-se – qual certidão de nascimento da felicidade

& como o olho que nunca cansa, do velho Barão do Rio Branco

Estatuado na praça que tem seu nome, onde os pássaros

Sem etiquetas & formalidades, cagam-lhe as ventas & os títulos

Fazendo troça nos seus cabelos & no seu terno de 1000 vinténs


A verdade pertence a todos, & não pertence a mais ninguém


A verdade mora em garrafas que, esvaziadas

São vomitadas por homens bêbados & vagabundos

Muito mais certos & piedosos do que o bispo diocesano

Que fala merda & se esconde atrás da saia do Deus cristão

O Deus bondoso que manda Adão para a puta que lhe pariu

& deixa Eva tomar no rabo, para aprender a fechar as pernas

& ama David com amor eterno, esse escroto filho da puta

Que não bastou-se em foder gostoso com a mulher do seu servo, Urias

Mas lhe envia como presente pro Esquecimento, na guerra santa

Que quem pode manda, e obedece é quem tem juízo...

E obedece é quem tem juízo?


A verdade pinta os cabelos como uma menina

& veste jeans, & calça coturnos & enche a cara de maquiagem

Para esconder aquelas olheiras bem merecidas

Quando, acordada, viu o sol surgindo furtivamente

Por trás do “S” que tem uma curva do Sanhauá

Ahhhhhhhhhhhhhh! Que amasso foda não foi aquele!

Às escondidas, adoecida de um louco amor

Crente que o ontem já não existe; & o amanhã não se saberá

& um hoje certo, como a certeza, não volta nunca

& agora é o tudo, & é preciso que seja assim


A verdade é um filme de Almodovar em um roteiro de Pasolini

É um cigarro pela metade, & a paciência chegando ao fim

É um poema de Allen Ginsberg, & é uma torta de gergilim


A verdade é um labirinto, & um desejo dos mais sagrados

É a trincheira do militante, das ilusões & das utopias

É garantia que não garante & sonha futuros, melhores dias


A verdade tomou assento entre platônicos & aristotélicos

& acorrentou-se aos ceticismos absolutistas

Bradou que omnis determinatio est negatio tamen

Negou Narciso, preferiu Ícaro, desesperou-se & foi... feliz


(P.)

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