segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Bendito seja o machado


Nasci no dia em que o selvagem
Pela primeira vez
Observou que os dedos das mãos
Juntas
São mais numerosos do que em uma
Só.
& quando viu que a pedra
Se não há quem mova
Permanece em seu lugar &
Solta
Irremediavelmente cai.
& deus nenhum era responsável pelo evento
& nem pela luz
& nem pelo calor que vem & vai
Conforme vai & vem,
O Sol.
Galhos queimavam no fogo,
Ardendo
Lobos uivavam distante,
Caçando
& as árvores que ninguém via
Tombavam longe,
Solitárias...
& os santos se embriagavam
& não havia um fiel
& não havia um ateu
Os deuses diziam, “temam!”
& os homens diziam: “Há deus!”

Nasci no dia do mecanismo
Quando as engrenagens todas
Contavam os dias,
& as horas,
& os minutos,
& quando os séculos não tinham nome
& quando o Leste & o Oeste,
Crepusculavam.
& fui o grito primevo
Fugindo da boca do tempo
No silêncio que se fez
Quando a besta adormeceu
& quando as corujas calaram
& quando o arco da Lua
Tocou o frio horizonte
Num abraço longo & profundo
& quando Gaia
Febril
Abriu os seus seios virgens
& fez seu ventre fecundo.

Nasci no dia em que Orfeu
Tendo do Hades voltado
Trouxe consigo o inferno
Vendo Eurídice, levada.
Quando as moças da Trácia
De amores, embriagadas
Despedaçaram-lhe (pobre!)
Sentindo-se rejeitadas.

Nasci no dia em que a América
A América Latina
A América menina
Viu as velas & a cruz de Malta
Quando as nações Inca & Maya
As nações Kechua & Mapuche
As nações Wayuu & Taino
Num transe de carnaval
Abriram braços e pernas
Aos deuses do Velho Mundo
Numa trepada fatal.
Quando o Condor
Abatido
Abraçou-se ao crucifixo
Mirando um jesuíta:
“Salvai-nos de vós, cristãos!
Salvai-nos de nós, um dia!”
& teve a língua arrancada
& teve asas cerradas
& os ouvidos furados
& as pernas decepadas...
& seus olhos imaculados
Viram o fim, afinal:
“Que bom penacho darás
À nossa Corte em Castela!
& à Corte de Portugal!”

(Patativa Moog)

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