sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

MARAVILHOSA QUEDA





Eu vi a mim mesmo caindo, & era uma Queda maravilhosa...
Como um Adão que cai para cima, era assim que eu caía
& vi pessoas andando a esmo, mas certas de seu Destino
certas de um paraíso porvir: a vida eterna, a Cidade Celeste
uma “Shangri-la” post-mortem, muito além do Himalaia
portas eternas que se abrem tão logo as do Tempo sejam cerradas
uma certeza tão certa que, por ela, todos morriam & matavam
lotavam igrejas, pagavam dízimos, faziam procissões, longas orações
torturantes penitências, abstinências cruéis & obras de caridade
trocando o que possuíam por essa pérola de valor enorme
depositada fora do Tempo, longe do furto & da corrosão
onde estariam os seus tesouros, suas esperanças & corações...
& enquanto eu caía, pensava se isso não era – ah, era! –
o maior de todos os egoísmos, maquiado pela piedade da fé
– o mesmo egoísmo tão combatido por todas as seitas cristãs
o mesmo que era seu, sim!, seu motor & antagonismo

Eu me vi a mim mesmo caindo, & era uma Queda maravilhosa
& aqueles que me viam, assim, não podiam compreender
chamavam-me de louco, herege, idiota ateu, filho de Satã
&, caso pudessem, queimariam meu corpo corrompido
para que minha alma se libertasse, depois da dor infligida
que o fogo pode queimar o mal, pode purificar o corpo
como o crisol faz ao ouro, &/ou o fogo do purgatório
& assim, & assim somente, se pode entrar na Cidade Santa
& eu, pela eternidade da eternidade, & pelos séculos sem fim
lhes bendiria por me acordarem, com a faca & com o estilete
& pela via da dor eu entenderia tudo: descortinada a Verdade
& seria feliz como eles: em eternos louvores ao deus cristão
bendizendo o seu lindo, santo, majestoso & doce Nome

& eu me via caindo, & as mãos de todos os santos se erguiam
& as mãos de todos os santos se voltavam para mim
suplicando que me retratasse, & que tivesse amor à minh’alma
& que visse quão grande era o delírio, & a multidão dos meus pecados
& tantos que, se colocados em livros, impressos & encadernados
o mundo inteiro não caberia, não; não poderia contê-los, não...
Mas as putas, os poetas, os boêmios, os loucos & os pagãos
de mãos ainda mais erguidas, animados pelo éter & pela fome
cantavam canções em volta do fogo, poetizando meu nome
em trechos inteiros de Adélia Prado & Manuel de Barros:
um enorme concerto a céu aberto para solos de passarinhos
anarquia da Palavra & da escrita, por amor & fidelidade a elas

& enquanto caía, a multidão de loucos perdidos & iluminados
celebrava a Liberdade Sagrada & incrível de se ser o que se é
sem leis & travas morais impostas, criadas pelo poder do medo
& todos diziam, a uma voz, como em um templo medieval:
“Bendito o que vem em nome do Nada, & caí dos altos céus
& ascende a ele, pelo poder da visão, & pela graça da Queda...”
& a multidão de vozes festivas & caras alegres dizia:
“Amém! & amém, & amem... & amem porque isso é bom!”
& quando perguntavam quem eu era, & qual a minha intenção
“eu não sou um bom lugar”, lhes dizia, “& nem uma religião”

& eu caía, mais & mais, caia... & era uma Queda maravilhosa!
Tão maravilhosa que não podia ser descrita em línguas modernas
mas tão somente por metáforas, analogias, figuras de linguagem
tão maravilhosa que, devidamente registrada & escrita
seria outro livro santo: como a Bíblia, o Corão, o Bhagavad Gītā
livro tão santo que, folheá-lo sem luvas, seria profanação
– porque a Velha Lei era, nele, abolida, rasgada & lançada fora
porque a Nova toldava a Velha: num fundamento que ninguém via
e nem precisava: bastava fechar os olhos e sentir o peso da Queda

& eu me via caindo, & tão divina era a Queda que, isso
o desejo de descrevê-la, a vontade de fazer seu fiel registro
era, de longe, a última coisa que eu pensava, que eu queria pensar
& fui julgado louco por aqueles que se julgavam sãos, donos da razão
& por aqueles que desconheciam o valor incalculável da Queda
& fui julgado & culpado de tudo, por todos, & por amor à Queda
& todos os juízes eram, naturalmente, certos, justos & bons
fincados na misericórdia comum da Graça, do Ocidente cristão
tão graciosos & justos que permaneceriam graciosos & sempre justos
mesmo quando arrancassem sangue inocente de pobres “mundanos”:
aquele que, contrário, levantasse o dedo mandando-os à merda
da primeira à terceira & quarta geração dos descendentes escrotos
os descendentes escrotos dos juízes escrotos, santos & bons
& fui julgado, sem voz & sem defesa: um louco, um câncer social
& todo mundo sabe o que o câncer faz, & o que se faz ao câncer
& todos sabem o medo que o câncer dá – & é preciso extirpá-lo
para que a cidade durma, & a dondoca ande descalça pelo jardim

& eu caía, caía... & curtia como um drogado a lombra dessa Queda
&, caindo, eu vi a mim mesmo como um dançarino de tango
um dançarino de tango em uma disputa de hip-hop, de trance rock
& via a mim mesmo como uma águia real furando as nuvens
& via a mim mesmo como um santo sem altar, mestre sem discípulos
um templo sem fiéis, uma praia sem sol, uma puta sem clientes...
& via a mim mesmo como um Atlante com o seu céu, seu castigo
um Sísifo com sua pedra, montanha acima, em seu castigo
sonho sombrio de Kaspar Hauser, contado por Werner Herzog
um Prometeu sem correntes, & ainda dado aos abutres &, por fim
a Esperança liberta: a caixa vazia de Pandora... & a fé sem fé

Sim: eu me via a mim mesmo caindo por toda a eternidade
a eternidade das horas, dos dias & dos meses que duram uma vida
uma vida que é tudo o que há, quando sabe-se findo o carnaval
Sim: eu me via a mim mesmo caindo – venturoso e extasiado –
&, ah, meus amigos!, ah, meus amigos!, como era tão bom cair...



(P.)

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