segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O Varadouro e suas estrelas:

um retalho histórico


Sexta-feira, 17 de setembro de 2010. A noite era um céu limpinho de estrelas ofuscadas pela iluminação artificial. João Pessoa é uma cidade iluminada, e sob muitos aspectos. Um deles é o fato de, em pleno regime militar (1974), haver gestado uma banda como a Jaguaribe Carne. Banda que foi/é movimento artístico-cultural, grupo de intervenção poético-musical, união de artistas para a ação estético-crítico-popular e vanguardista. Cantando o bairro onde nasceu – e que também leva no nome –, a Jaguaribe Carne também canta a cidade e olha para o seu povo, animando-o, provocando-o, como na minimalista “Comentário”: “Nalva falou / Que estava cansada / De ficar quieta. / E vocês? / O que dizem?”. Estrelas são as pessoas, para a Jaguaribe Carne. Estrela é o povo; a massa dos indivíduos que, dia-a-dia, vivem a/na cidade e, nela, tecem sonhos: deslizando por suas ruas, suas ladeiras, suas praças, suas feiras. A música da Jaguaribe Carne, como bem define Walter Galvão, “é uma lendária rebelião formal propondo questionamentos, belezuras, estratégias iconoclastas e uma poética libertária ao movimento artístico nordestino e brasileiro”. Sim, é.

Por tudo isso e pelo mito que se gerou em torno dos irmãos Pedro Osmar e Paulo Ró, e pela contribuição que eles deram à música paraibana, para nós da Madalena, não somente era uma honra, mas também uma alegria dividir pela primeira vez o palco com eles. Era uma noite de sexta-feira, 17 de setembro de 2010, e o tempo nos presenteou com um céu limpinho e estrelado. Estrelas no céu, estrelas na terra. No Varadouro, no Espaço Mundo, o povo iluminava a noite.

Na passagem de som, Pedro Osmar, armado com a sua viola, berrava o trecho famoso da/na música “Ferrugem popular”, quinta do álbum “Vem no vento”, de 2003: “O poder só morre / De doença natural...” Como Paulo Ró adoecera dois dias antes, Pedro estava sozinho, empunhando um Micro System Toshiba TR7045MP3, para executar sons e efeitos previamente preparados em um CD. A pedido dele, e na mais completa espontaneidade, convidei Nildo Gonzalez (que estava ali na Antenor Navarro, em frente ao busto do próprio) para acompanhá-lo na bateria, em partes combinado-improvisadas – uma das marcas características da banda/movimento, et cetera, et cetera. E o companheiro Nildo, como sempre, mostrou a que veio. Também havíamos combinado que, na quinta música, a Madalena Moog ocuparia o palco e, numa Jam final, conduziria o resto do show.

Pedro Osmar, mestre: "O poder só morre de doença natural..."

Edy Gonzaga, Nildo Gonzalez e Pedro Osmar, Jam alucinada

Só lembro que, já na segunda música, Edy (baixista nosso e da Cabruêra), que via o show ao meu lado, disse: “Vou subir, tocar o baixo...” e subiu, e tocou; e a coisa, a partir daí, começou a pegar fogo. E eu dizia à Renata: “Como é que esse povo aí fora não tem coragem de pagar R$ 5,00 para ver uma coisa danada de boa dessas, hum?!” E ela concordou. A sensação que eu tinha era que, ali, algo histórico estava se configurando. Soube depois, através de amigos, que alguns dos que viam o show foram lá fora convidar outros para que entrassem, pois tinham de ver o que estava acontecendo. O Arthur (Cabruêra), depois dos shows, me contou que ele também fez isso, e botou amigos para dentro, dizendo-lhes que não podiam perder aquilo.

Conforme combinado, subimos ao palco quando o Pedro, cantando/falando, nos convidou com: “Onde é que está a Madalenaaaa?, venha cá, meninaaaa...” E nós fomos. No palco, logo em seguida, vimos o Chico César, empolgadíssimo, unir-se a nós na farra. Ele pegou a Fender Jazz Master do Walter, mas ela estava desligada, e aí eu lhe ofereci a minha Jaguar – não faria isso para tantos outros. A Jam se estendeu, a casa pegou fogo. Lá pelas tantas, vi o Baixinho do Pandeiro entre o público e lhe disse, ao microfone: “Grannnnde Baixinho, chega aqui p’ra festejar com a gente, seu moço.” Não deu outra. Baixinho comandou uns cocos e alguns forrós (algumas músicas do Jackson do Pandeiro), fazendo o povo dançar, rodar, pular... Depois veio ao palco o pernambucano Alexandre Ferreira (da Cascabulho), tocador de pífano que estava aqui pela cidade; em seguida foi a vez do nosso Alex Madureira, que dispensa apresentações. Coco, xaxado, embolada, forró, guitarrada, lambada... tudo misturado nesse caldeirão festivo, e tudo lindo: a casa ficou cheia. A alegria é contagiante.

Edy Gonzaga e Chico César, participação incendiária

Rieg Wasa, Chico César, Baixinho do Pandeiro, Alexandre Ferreira e todo mundo

Lá no meio da folia, eu pensava: “na mudança de banda vai haver dispersão do público”. Às vezes é ótimo estar enganado. Sabe aquelas noites em que tudo dá certo? Sabe aqueles shows em que o público ’stá aí, p’ro que der e vier? Foi assim. Fiquei pensando que o fato de termos começado com “Ela só gosta é de carnaval”, um meso-samba, ajudou a manter o clima. Lindo demais ver o povo dançando ao som da sua música; mais lindo ainda é ver como “Você marcou comigo” pega fácil, e como tem agradado a todos e todas; lindo, por fim, mas não “finalmente”, ver o Arthur atendendo ao nosso convite, subindo ao palco e cantando o trecho introdutório (que costumamos fazer com o sampler) de “O homem do doce”. Grande Arthur! Era a velha geração (nem tão velha assim) apostando na nova, estabelecendo alianças, criando laços... e parecia que estava tudo bem, e estava mesmo, e está; e é bom que seja assim.

Kalina Kelli, estreando na Madalena Moog

Foi assim, com festa e com folia, que a noite de sexta-feira, 17 de setembro de 2010, no Varadouro, no Espaço Mundo, tornou-se para mim e para muitos que ali estavam e que sentiam a energia boa que emanava de tudo (aqui narrado com a máxima fidelidade), uma noite iluminada, uma noite histórica na (ou para a) música da cidade, um evento para ser guardado, rememorado, contado depois, com entusiasmo. No táxi, voltando para casa, exausto, lembrei do conhecido poema de Políbio Alves, “Varadouro – soneto em preto e branco” (2002, Edições Varadouro): O Varadouro / ainda pulsa / vive / explode cheio de sangue / intercortado de mangue. // Ancoradouro / semidouro / retrata / veias e o coração / da velha cidade.” Sim, o Varadouro vive! E viva o Varadouro!

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Texto: Patativa Moog, com intervenções de Kalina Kelli / Fotos: Rafael Passos

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