quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

FRONTEIRAS



Eu vejo a fronteira ao Norte
com suas estradas sinuosas & seus meninos que vendem tudo
a começar dos seus corpos, dados ao Tempo
a começar da esperança & do futuro que nunca vem.
Eu vejo o Brasil por dentro & ele ainda dorme
cambaleando embriagado & com cheiro de gasolina
coçando o saco & procurando alguma porta para a latrina:
cagará instituições, mijará leis, vomitará direitos tributários
& quando chegar ao espelho, verá sua cara amassada
& sua cara será a cara do povo: amassada & sedada
– gente feliz sorridente, morta de utopias, viva de barbáries
feliz demais pela graça da vida & da saúde pública
feliz demais pelo pão dormido & pela água fresca
feliz demais pelo futebol & pelo programa do Silvio Santos
feliz demais pela TV Globo & seu jornalismo tão competente
feliz demais pela garota de Ipanema, que nunca morre
& pelas FMs que tocam todas as canções da moda
que é melhor que o passado glorioso da bossa-nova
que era melhor que nada – que o tapa na cara, por exemplo
ou a morte certeira, chegada assim, de acaso anunciada:
sem explicação, sem licença, sem cerimônia
sem fundo musical, sem cenário colorido, sem nada, nada...
Eu vejo a fronteira ao Norte & suas estradas gritam por mim

Não demora & eu vejo, aí, uma extensa fronteira ao Sul
ele de nariz empinado, com seus piás de olhos azuis
& o Negrinho do Pastoreio passando chispe, doble e luz!
por entre coxilhas & canhadas, & na beirada dos lagões
montando o baio & tangendo as tropilhas, endiabrado
cortando os charcos, vencendo os pampas sem fim, deitados
onde o Mario Quintana desenhou nuvens & as poesias
que a ABL depreciou – por estupidez, imbecilidade & zombaria
& eu vejo Porto Alegre da janela do meu avião
da janela do avião & deste meu assento que é flutuante
& vejo São Chico & São Leopoldo, os santos que um dia amei
porque também fui amado: que amor é assalto, salto no escuro
é o passado & o presente, & não se sabe o futuro, não
mas liga as coisas: feito a palavra & o pensamento
de um Eduardo Guimarães a um David Coimbra.
Eu vejo o Sul como ele é, & o vejo de cima
que é preciso estar fora da casa para poder notá-la
eu vejo a alma do povo é pelos olhos que o povo tem
& a alma de um povo é sua arte & sua cultura
& é preciso garantir a arte & a cultura para o povo
porque é no povo que o Espírito do Tempo habita
& a medida da sua grandeza é dita pela História
nos anacronismos tão evitados por todos nós
– nós, que planejamos as férias para o Verão
enquanto a moça fala do tempo na TV em mute.
& eu sinto que preciso ver o Leste, imediatamente
se não quiser ficar cego, perder a alma, & para sempre
noites de Vodka, Gin & Absinto me fosforizaram
mas o sol do Sul, sim, me lembra Catulo, que quero bem
me lembra o luar, sim, do sertão, que igual não tem...

& vejo o Leste, levado por um Pavão Misteriosíssimo
& suas canções me trazem sossego &, dormindo, sonho
& nos meus sonhos vivo alguns temas de Antônio Nóbrega
& vejo as noites iluminadas de São João, & de São Pedro
quando há folguedo das criaturas que habitam o mato:
a Codorniz que voa assustada, & o sr. sapo em sua lagoa
& a Coruja, que é a mãe da Lua, & a Peitica & o Bacurau...
& o orvalho que beija a flor, que só quem vê é quem sabe andar
que nem Gonzaga que é ser tão grande, tão bom lugar.
Eu vejo o povo marchando, com seus benditos & procissões
& sobem ao horto, em Juazeiro, & descem ao Crato, à Praça da Sé
& há santos vivos, promessas pagas – São Saruê, outro Canindé
Padre Cícero dá uma patente de Capitão para Virgulino
& Frei Damião reza o seu terço em uma serra de Guarabira
dizendo que o Cão anda aprontando pelas cidades
& que se carece, hoje mais que sempre, de penitência, de caridade
& que o preço é alto para a alegria dessa indulgência...
O discurso engrossa &, para mim, já não diz mais nada
vou ao litoral & vejo a menina com seu bikini pela calçada
eu vejo a casa de Jesuíno & vejo o quiosque do Amauri
estamos num sábado, final de dia, boa rotina
& minha vontade é uma garota lá de Campina
– mas o sonho é breve & muito breve o amor, também
minha fé pequena me leva ao Leste, me leva além...

& por fim eu vejo a fronteira Oeste, & o centro-oeste
& a essa altura, de tanto andar, nem sei onde estou
nem sei onde estive ou quantos de mim ficam onde vou...
mas sei o que quero, quando chegar & quando partir
& nem é tão grande a América, & Santiago é logo ali
& desejo o Mundo com suas estradas... caio nos Andes
corro para a neve, que pode ser arma em minhas mãos:
agora sou menino: sem contas atrasadas, preocupação...
Caio em mim. O Planalto Central me chama
& eu quero ver logo o Maciço dessas Guianas
me parto em dois: o que vai embora, o outro que fica
um que é liberdade, outro que é prisão & contentamento
um que é energia, outro que é todo esse esgotamento
que nem a Balbina ou a Samuel alimentariam, não
“um velho safado”, como Edy diz, se não me engano
“um velho safado”, como Edy diz, bukowskeano
& o santo Renato vê meu estado & tem piedade
me paga uma cerveja, me dá uma carona & “até mais tarde...”
eu que vou tão pássaro, num voo leve, assim, sem asas...
É quando a noite chega & vem trazendo outra madrugada
o Oeste se cala, & não há fronteiras... não há mais nada

(P.)

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