segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

PEDRO EM CARNE VIVA

Pedro em Carne Viva

Foto: Felipe Gesteira

Um dos fundadores do Jaguaribe Carne, Pedro Osmar faz um balanço do legado cultural deixado pelo grupo, relembra fatos marcantes de sua trajetória e alfineta a cena rock paraibana

Os vinis de capas coloridas ainda podem ser encontrados em sites de venda da internet, a preços que não dão a dimensão histórica sequer da imagem estampada nas contracapas: ali, com um sorriso amarelado pelo tempo, dispostos numa formação que lembra a das delegações das seleções de futebol, 40 músicos posam desordenadamente para uma foto que marcou época.

Confundido entre semblantes simpaticamente fantasmagóricos, está o ainda desconhecido Chico César, que acabara de gravar sua primeira canção, “Virgem louca mimadinha”, uma sátira da narrativa bíblica de Salomé, que pede a cabeça de São João Batista ao tetrarca Herodes. Uns timidamente sentados, outros alvoroçadamente de pé, destacam-se, ainda, os jovens Paulo Ró, Dida Fialho, Braulio Tavares, Gilvan de Brito... Todos eles parecem orbitar em torno da aura de um sujeito sorridente, que salta do centro da foto com seus cabelos revoltos e cavanhaque estranhamente desgrenhado: seu nome é Pedro Osmar.

Quase 30 anos depois daquela fotografia, que ilustrou os dois primeiros volumes do LP Música da Paraíba, de 1982, Pedro é aparentemente a mesma figura pacata que, amenizado pelo adicional das décadas, ainda guarda um brilho tímido no olhar.

Duas palavras, porém, acendem a chama de suas pupilas, e são elas que vão se repetir em mais de meia hora de conversa nos corredores da Fundação Cultural de João Pessoa (Funjope), onde trabalha desde 2006 no desenvolvimento de ações nos bairros de João Pessoa: Jaguaribe Carne e Guerrilha Cultural.

“É só através da guerrilha cultural que a gente consegue transpor os limites de uma cidade como João Pessoa”, afirma o músico, completamente à vontade em seu traje diário de trabalho: camiseta, bermuda e sandálias. “As capitais do Nordeste são tipicamente reacionárias. A atitude reacionária está na Academia, está nas ruas. Ou criamos uma barreira, uma muralha ideológica, ou estamos fadados a não fazer absolutamente nada”, completa.

Um dos fundadores do ‘Jaguaribe Carne’ – mais que um grupo, um movimento cujas ações até hoje repercutem estética e politicamente na cultura paraibana -, Pedro continua a acreditar nas ideias que semeou nos anos 1970, quando mobilizações como o ‘Musiclube da Paraíba’, o projeto ‘Fala Bairros’ e o ‘Movimento de Escritores Independentes’ estavam num processo de gênese que iria culminar na proposta de “antropofagia integrada” promovida pelo ‘Jaguaribe’. “Tento viver sempre nos extremos daquilo que acredito, e eu acredito num projeto de arte ideológico, apesar da dificuldade de que um projeto desses, que não pressupõe o consumo, sobreviva nos dias de hoje”, diz o artista.

Ressurgindo esporadicamente da poeira do passado em shows, turnês e participações, Pedro Osmar e o ‘Jaguaribe Carne’ se juntaram, em 2004, à caravana Rumos Itaú Cultural, viajando dez cidades do Brasil participando de apresentações e debates.

Foi em um deles que Pedro Osmar conheceu Marcelo Garcia, um diretor de cinema que se interessou por sua história quando, enquanto debatedores faziam apologia a dispositivos tecnológicos como instrumentos da música, Pedro Osmar defendia, ferrenhamente, o instrumento da música como dispositivo ideológico.

Ao lado de Fabia Fuzeti, Marcelo Garcia produziu o documentário Jaguaribe Carne: Alimento da Guerrilha Cultural, filme que foi selecionado pelo Programa Petrobrás Cultural em 2006 e exibido no Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa (Cineport), no ano seguinte. “O documentário prova que o ‘Jaguaribe Carne’ passou por um crivo muito estreito, que é o da crítica que pensa a cultura do eixo Rio-São Paulo”, afirma Pedro Osmar.

Um ano antes da gravação do filme saía Farinha Digital, disco solo que amadurece a linhagem experimental do Jaguaribe Carne unindo as pontas da tradição popular com as correntes musicais de vanguarda. “O trabalho do Jaguaribe Carne se fundamenta em duas tendências: a que eu chamo de ‘Hermeto Pascoal’ e a ‘Geraldo Vandré’. A verve Hermeto é inspirada no conceito de música livre, da anarquia sonora. A Vandré é a de ter a coragem de dizer as coisas, o que era típico de nossa geração”, aponta.

Falando em gerações, Pedro Osmar é assumido como influência por bandas que, sufocadas pelo sincretismo atordoante da música atual, vão buscar novos ares no velho panorama histórico da música paraibana. Ditos tributários de sua sonoridade, estes talentos que despontam por aqui são acolhidos muito bem pelo mestre: “Vez ou outra, bandas como Madalena Moog, Ubella Preta e Zé Viola Progressive Band me chamam para fazer um ‘free’. Eu aceito fazer o que chamo de ‘free’ porque eu tenho verdadeiro pavor a ensaios e essas bandas têm uma atitude típica do rock. Eu nunca fiz rock, mas gosto da provocação e da bagunça”.

Diante do envolvimento destas bandas com coletivos de rock que tentam movimentar o cenário cultural pessoense, entretanto, Pedro Osmar se mostra implacável. “Não enxergo nem unidade, nem consistência neste movimento. Estas bandas e coletivos têm, sem dúvida, uma importância para a cena rock, mas nada além disso. Eles não saem do Varadouro”, diz Pedro.

“É preciso assumir a cidade como palco, assumir a cidade como universidade”, conclui com toda a propriedade de quem, anos atrás, articulou com seu irmão Paulo Ró o vórtice do Jaguaribe Carne, para onde convergiram recrutas que representavam os bairros de toda a João Pessoa.

“Do Castelo Branco, tínhamos Chico César; da Torre, Totonho; Milton Dornellas vinha do Altiplano; Paulo Ró, Adeíldo e eu, do Jaguaribe. Isso facilitou a ocupação dos bairros, onde íamos e dialogávamos com liderenças, organizávamos sessões de cinema. Cheguei a reunir toda a comunidade de uma favela no quintal da minha casa para ver um filme de Vladimir Carvalho”, lembrou.

A sessão doméstica de Incelência para um Trem de Ferro (1971), filme do diretor paraibano em que seu irmão e futuro cineasta Walter Carvalho trabalharia pela primeira vez como assistente de fotografia, foi um acontecimento marcante para Pedro Osmar. “Minha mãe, deficiente visual, ouvia tudo e ficava me perguntando o que estava acontecendo. Ela perguntava: ‘E onde é que esse povo todo vai sentar, meu filho?’, recorda-se Pedro, emocionado. “A música, a literatura, a dança eram eixos pra gente dialogar com aquelas pessoas, falar das suas dificuldades, discutir problemas de saúde, de transporte”.

O que pode parecer uma obsessão de Pedro Osmar por encontrar na música uma função social, talvez se explique nos ecos sofridos de sua trajetória. De origem humilde, ele e seu irmão se acostumaram a tocar em instrumentos estropeados, com cordas frouxas e de acústica suja. “A primeira vez que Carmélio Reinaldo (professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal da Paraíba) ouviu nossa música disse o seguinte: ‘Mas como é possível que vocês, com violões quebrados e encordoamento velho, façam um som desses?’. Nós não tínhamos acesso a muita coisa, tudo era conquistado com bastante luta e dificuldade”, conta o artista.

Tendo que se acostumar a conceber o processo musical não apenas como o ato de tirar melodias de um bom violão (por não dispor de um), Pedro Osmar abriu sua mente e passou a valorizar o único instrumento que tinha de graça: o discurso. É a palavra que ele usa como arma para mudar seu mundo, é com ela que mobiliza as forças materiais que por anos lhe faltaram, em ideias e projetos que vem conduzindo na Funjope.

Animado com a atmosfera de renovação política e dos recentes frutos que sua militância conquistou, Pedro Osmar não deixa de transparecer cautela: “A reflexão crítica é um momento importante em qualquer processo. É preciso que o segmento cultural paraibano não se disperse, não entregue as suas armas”, diz o mentor do Jaguaribe Carne, que fala com o jargão típico daqueles que, como ele, um dia já fizeram o que, na música, tantos tentaram e poucos conseguiram: uma revolução.

(Texto/entrevista de Tiago Germano, originalmente publicado na edição de 09/01/2011 do Jornal da Paraíba)


2 comentários:

tiago germano disse...

Valeu pela divulgação, Pata. Só faltou a autoria. heheh. Abraço!

MADALENA MOOG disse...

Putz! Foi mesmo... e eu sempre dou o crédito a quem é o crédito. CONSERTADO o lapso. Abraço, Tchi.